ANAC: de 2006 a 2025, um histórico de riscos à aviação brasileira, por João Vitor T.

Os recentes cortes de R$ 30 milhões no orçamento da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) em 2025 – equivalentes a 25% de seus recursos autorizados – já impactam, ainda de maneira incalculável, serviços essenciais à gestão e à manutenção da qualidade na aviação civil brasileira. Naturalmente, a degradação da capacidade de uma agência reguladora com a importância da ANAC eleva substancialmente riscos de acidentes aeronáuticos e de prejuízos ao sistema, aos seus usuários, aos seus operadores e, sobretudo, aos avanços naturalmente obtidos por um setor tremendamente desafiador, sobretudo em nosso país.

A crise orçamentária da ANAC reflete, infelizmente, padrões preocupantes já observados durante a gestão de Denise Abreu na agência (2006-2007), tão logo houve a transição do antigo DAC (Departamento de Aviação Civil), ainda militarizado, para a ANAC enquanto uma agência totalmente civil e independente. Uma combinação altamente maléfica e tremendamente amadora de falhas regulatórias e limitações operacionais contribuiu para o famoso caso “apagão aéreo” e, posteriormente, tragédias como os voos Gol 1907 e TAM 3054, ambas separadas por apenas 9 meses. À época, nesse interstício entre os dois maiores acidentes aéreos da nossa aviação, o presidente Lula foi categórico ao cobrar os seus subordinados:

“Eu quero prazo, dia e hora para um Brasil que não tenha mais problemas nos aeroportos brasileiros” (SIC).

Ele não deu o prazo, não disse o dia e sequer estipulou a hora. E deve ser por isso que, em 2025, estamos novamente debatendo um tema que já deveria ter sido resolvido há pelo menos 17 anos.

A sucessão de notícias e notas oficias advindas de todos os setores da imprensa e da própria secretaria de comunicação da ANAC demonstra que a desestruturação da fiscalização aeronáutica já é capaz de gerar consequências catastróficas e duradouras para a segurança de voo no Brasil — o que eu particularmente considero uma grande bomba relógio. Tamanha fragilidade orçamentária da ANAC não passou desapercebida de autoridades internacionais no que se refere à capacidade do Brasil de manter padrões de vigilância e segurança aérea. Essa percepção pode afetar acordos bilaterais, limitar voos internacionais e prejudicar inclusive as exportações de tecnologia aeronáutica brasileira [1] [4] [3].

A ANAC opera em 2025 com seu menor orçamento em mais de uma década. Um cenário completamente controverso, já que temos um governo que notoriamente gasta muito mais do que arrecada e, no ímpeto de suprir a sua própria ineficiência, desmantela justamente quem possui — ou deveria possuir — condições de, com uma gestão econômica correta, manter acesa a chama que ainda resta dentro de uma estrutura que precisa ter a eficiência como valor inegociável. O resultado: suspensão de certificações operacionais, de processos de homologação de novas empresas e de certificação de novas tecnologias (inclusive eVTOLs). E o mais grave: a redução de 60% nas inspeções realizadas “in loco” pela ANAC — ou seja, atividades de fiscalização em companhias aéreas, oficinas de manutenção e aeroportos foram drasticamente reduzidas, elevando o risco de incidentes não detectados e multiplicando o risco de acidentes fatais inclusive na aviação de linha aérea regular.

Atestando a ineficiência do Estado brasileiro na manutenção de um sistema eficaz de gestão da aviação civil, ocorre ainda a paralisação de treinamentos e de certificação de pessoal: Exames teóricos para emissão de licenças de pilotos, comissários de voo, agentes de AVSEC e mecânicos foram suspensos, estrangulando a renovação de profissionais qualificados.

Autoridades internacionais já manifestaram preocupação formal com a capacidade brasileira de garantir padrões de segurança, o que pode resultar em restrições a companhias nacionais no exterior. Essa degradação ocorre mesmo após a tragédia do voo 2283 da VoePass, ocorrido em 9 de Agosto de 2024, o qual expôs falhas sistêmicas, latentes e inconcebíveis no papel que é inerente à uma agência reguladora em um país com as dimensões e a relevância do Brasil.

Se voltarmos os nossos olhos ao passado, na intenção de tentar aprender com os acontecimentos anteriores de modo a corrigir os erros do presente e do futuro, podemos traçar um retrospecto com a crise de 2006-2007, o famoso “apagão aéreo”. À época, a ANAC – sob direção da Sra. Denise Abreu – falhou repetidamente em conter a deterioração do sistema aéreo. A omissão da agência no controle de padrões de segurança contribuiu para o acidente do voo TAM 3054 em 17/07/2007, o maior acidente aéreo já ocorrido com uma aeronave brasileira dentro do nosso território. As investigações conduzidas pelo CENIPA, condensadas no Relatório Final deste acidente, apontaram que ANAC, com o conhecimento da Sra. Denise Abreu, liberou a pista de Congonhas sem a conclusão das obras de recapeamento e de drenagem hídrica, mesmo sabendo dos riscos da operação de jatos comerciais em pistas molhadas especificamente em Congonhas.

O relatório final do CENIPA referente ao acidente, publicado em 2009, destacou ainda que a ANAC ignorou recomendações técnicas, datadas ainda de 2006 – e, portanto, anteriores ao voo 3054 de 17/07/2007 –, que poderiam ter evitado a tragédia com o PR-MBK, tal como a proibição de pousos em Congonhas com reversores inoperantes [10] [20] [13]. Não contentes com a sucessão de omissões, ainda no âmbito da agência reguladora, documentos técnicos foram apresentados pela ANAC à Justiça como normas oficiais, quando eram apenas estudos preliminares, prática que influenciou decisões judiciais questionáveis acerca das operações em Congonhas.

Durante o auge do caos aéreo, com cancelamentos em massa e passageiros retidos em aeroportos, a Sra. Denise Abreu foi fotografada fumando charuto em uma festa na Bahia, simbolizando a desconexão da direção da ANAC com a emergência [6] [7]. Ao mesmo tempo, a então ministra Sra. Marta Suplicy mandava, em rede nacional, os passageiros abarrotados nos aeroportos ao redor do Brasil “relaxarem e gozarem”. A aviação nessa época tinha um lema: o dia de hoje está melhor que o dia de amanhã.

O acidente do voo 2283 em Vinhedo (09/08/2024) ilustra como padrões históricos de negligência persistem. A própria decisão da ANAC quando na cassação definitiva do Certificado de Operador Aéreo da VoePass expõe, de maneira bastante cristalina, o lapso temporal entre a falta de atuação da agência que poderia ter encontrado tamanha quantidade de omissões e de negligências antes da consumação da morte de 62 pessoas.

Senão vejamos: A ANAC detectou 2.687 voos irregulares realizados pela VoePass após o acidente do voo 2283, com aeronaves operando sem inspeções obrigatórias e sem condições aeronavegáveis.

Nessa linha, a agência só suspendeu o Certificado de Operador Aéreo (COA) da empresa em março de 2025 – apenas sete meses APÓS a tragédia – após identificar “degradação sistêmica” nos controles de segurança.

Me causa uma particular estranheza tal conclusão ter chegado após uma fiscalização intensa e assistida ocorrida apenas no passado recente, já que situações absolutamente temerárias vindas da Passaredo/VoePass já são conhecidas pela própria agência reguladora e por uma ampla quantidade de profissionais da comunidade da aviação civil brasileira há, pelo menos, 9 anos. Diversas situações culminaram, inclusive, em diversos (e caríssimos) processos de multas e autuações em face à Passaredo/VoePass. A demora na resposta regulatória e a necessidade de uma fiscalização intensiva pós-acidente sugerem de maneira inequívoca uma fragilidades na capacidade de detecção precoce de irregularidades. O caso VoePass evidencia que, mesmo diante de sinais claros de degradação dos controles internos de uma companhia aérea, o sistema de supervisão para o qual a agência reguladora existe não foi suficientemente eficiente para impedir que milhares de voos fossem realizados em condições inseguras.

Novamente, assim como no caso TAM 3054, a ANAC reagiu tardiamente, implementando medidas corretivas e atuando como a sociedade espera de uma agência reguladora apenas após o desastre. Tarde demais, sobretudo para as famílias das vítimas da tragédia que ainda sofrem com todos os desdobramentos relacionados às perdas de seus entes queridos.

A história da aviação civil brasileira é marcada por ciclos de subfinanciamento e falhas regulatórias que comprometem a segurança. Os cortes de 2025 repetem erros do passado: assim como na gestão da Sra. Denise Abreu, a asfixia orçamentária reduz a capacidade de prevenção e resposta da ANAC, criando condições para novas tragédias. A cassação da VoePass após 2.687 voos inseguros evidencia que a agência, mesmo com dados concretos de irregularidades, falha reiteradamente em agir preventivamente.

Para romper esse padrão, é essencial recompor urgentemente os recursos da ANAC e fortalecer sua autonomia técnica, evitando que o Brasil repita capítulos sombrios de sua história aeronáutica. Não precisamos ter páginas escritas à base de sangue.

Que não tenhamos a tristeza de viver pesadelos como os que vivemos em 29/09/2006, 17/07/2007 e 09/08/2024.

Publicado originalmente em LINKEDIN

Fontes (conforme citadas ao longo do texto, em colchetes numéricos):

https://www.panrotas.com.br/aviacao/investimentos/2025/06/cortes-no-orcamento-ameacam-seguranca-aerea-e-certificacoes-no-brasil-diz-anac_219014.html

https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/cortes-orcamentarios-impactam-servicos-de-agencias-reguladoras/

https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2025/06/29/cortes-no-orcamento-ja-afetam-dia-a-dia-de-agencias-reguladoras-inss-e-universidades.ghtml

https://pt.wikipedia.org/wiki/Denise_Abreu

https://www.estadao.com.br/150-anos/150-momentos/o-flagra-da-chefe-da-anac-fumando-charuto-em-festa-durante-apagao-aereo-no-pais/

https://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL93372-5601,00.html

https://www.conjur.com.br/2006-dez-20/entidades_processam_uniao_anac_empresas_aerea/

[PDF] A crise do transporte aéreo no Brasil – 2006 e 2007 https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/304/13A%20crise%20do%20transporte%20a%C3%A9reo%20no%20Brasil%202006-2007.pdf

https://pt.wikipedia.org/wiki/Voo_TAM_3054

https://pt.wikipedia.org/wiki/Voo_Gol_1907

https://oglobo.globo.com/politica/justica-recebe-denuncia-contra-diretores-da-tam-da-anac-por-acidente-que-matou-199-pessoas-2714787

https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/08/06/novas-determinacoes-da-anac-poderiam-ter-evitado-acidente-da-tam-em-2007-em-sp-julgamento-do-caso-comeca-amanha-7.htm

Clique para acessar o tam-anac-absolvidos-acidente-congonhas.pdf

https://pt.wikipedia.org/wiki/Voo_Voepass_2283

https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2025/03/11/relembre-acidente-com-aviao-da-voepass-que-deixou-62-mortos-em-vinhedo.ghtml

https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2025/06/25/anac-diz-que-voepass-fez-26-mil-voos-com-avioes-sem-manutencao-adequada-apos-tragedia-em-vinhedo.ghtml

https://www.terra.com.br/noticias/apos-acidente-aereo-voepass-perde-licenca-ao-voar-26-mil-vezes-sem-manutencao-diz-anac,d64608a8ca8f43272f45af88d4a029f14rvodqeh.html

https://www.campograndenews.com.br/brasil/cidades/sete-meses-apos-acidente-em-vinhedo-anac-suspende-operacao-aerea-da-voepass

Relatório a – nº 67/cenipa/2009 (TAM 3054) https://www.gov.br/anac/pt-br/assuntos/seguranca-operacional/gerenciamento-da-seguranca-operacional/relatorio-de-acidentes/arquivos/2007/pr-mbk.pdf