Mia Couto: “Rever obras é censura”, por Duda Monteiro de Barros/Veja
Um dos grandes escritores da atualidade, o moçambicano Mia Couto, 67 anos, mantém fortíssimo laço com o Brasil, que em suas contas já visitou pelo menos três dezenas de vezes. O autor, traduzido em mais de trinta idiomas e vencedor do prestigiado Prêmio Camões, tem suas raízes literárias fincadas em nomes como Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo, que leu desde cedo. Intelectual que não foge de temas que incendeiam a atualidade, Couto sempre se situou à esquerda no espectro ideológico — na juventude, fez inclusive parte do movimento armado de independência de seu país —, mas acha que falta à ala mais progressista de hoje o reconhecimento “de que o mundo se torna a cada dia um lugar mais complexo”.
Em meio à ascensão do politicamente correto, ele enxerga os vários matizes de polêmicas questões, como a adoção da linguagem neutra e o revisionismo na literatura. Dono de obras-primas do realismo fantástico e agora dedicado a um livro sobre a I Guerra, o biólogo de formação concedeu, com sua inconfundível voz baixa e tranquila, a seguinte entrevista a VEJA.
Clássicos da literatura mundial estão sendo questionados e até modificados à luz do politicamente correto. O senhor é a favor do movimento revisionista tão em voga?
Definitivamente, não. Sempre que tentam fazer isso, o resultado é desastroso para a arte da escrita. Uma vez, em visita à Alemanha, fui chamado por uma editora que estava traduzindo um livro meu. Na história, um capitão português que vive no ano de 1890 chama um africano de preto em um dos diálogos. Era a forma dele, colonial, de se expressar. Havia um contexto. Mas o tradutor alemão insistiu que não poderia usar aquele termo. Eu então perguntei qual seria sua sugestão. E veio a resposta: “Use um ‘excessivamente pigmentado’ no lugar de preto”.
Aceitou a sugestão?
Não. Achei um absurdo total, até porque este “excessivamente pigmentado” embute uma subjetividade que também pode resvalar em preconceito. A moda do revisionismo gera situações ridículas, que acabam por fragilizar o movimento da diversidade e da inclusão — este, sim, sério e respeitável.
O senhor diria que o revisionismo é uma modalidade de censura?
É uma censura, sim. E pior: feita contra alguém que provavelmente já não está mais vivo e não tem direito à palavra. Essa ala da sociedade que sai por aí alterando grandes obras pretende purificar o passado. A revisão possível, a meu ver, deve se restringir a adicionar observações em um livro explicando o contexto histórico em que foi escrito. As mudanças não podem ser na base da subtração ou da substituição, mas do acréscimo de informações. Assim, é razoável.
Certa vez, o escritor Umberto Eco (1932-2016) disse que as redes sociais deram voz aos imbecis. Concorda?
Nos dias de hoje, o que percebo é que muitas pessoas só leem frases soltas de meus livros nas redes. Me dizem “adorei aquela sua frase”, que é apenas o fragmento de uma obra muito maior, e ela é ignorada. Os escritores viraram frasistas. Outro problema é que todo mundo se sente um pouco especialista ali e alguns até viram referência em assuntos dos quais não têm nenhum domínio. Confundem fato com opinião, tudo em troca de likes, o que alimenta um ciclo perigoso.
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